Menina de 2 anos que foi estuprada teve de testemunhar em julgamento

 

Meses após o crime, o estupro de uma criança de dois anos está gerando protestos e revolta nacional em Mianmar.

O homem acusado pelo crime está sendo julgado e a vítima, Vitória – cujo nome foi trocado para proteger sua identidade – teve de depôr no julgamento.

A menina, que hoje tem três anos, falou durante duas horas sobre o que aconteceu, acompanhada apenas por uma advogada especialmente treinada.

Ela foi vista pelo resto da corte apenas por vídeo, enquanto descrevia o que foi feito com ela e por quem.

Diferentemente dos outros dias do julgamento, jornalistas e público não puderam assistir aos procedimentos.

O caso é controverso por muito motivos – a idade da vítima e o fato de que ela teve de passar por todo o processo do julgamento, por exemplo.

Mas também existe uma enorme indignação pública alimentada pela suspeita de que a polícia possa ter prendido o homem errado pelo crime.

Em seu depoimento na Corte, Vitória identificou como estupradores duas pessoas que não estão em julgamento.

 

O que diz a polícia?

Na manhã de 16 de maio, a bebê foi levada à creche particular Wisdom Hill, na cidade de Naipidau, capital de Mianmar. Em algum momento antes de voltar para casa, segundo a família e a polícia, ela foi estuprada.

Foi a mãe quem percebeu os machucados na menina, e ela foi levada ao hospital. A polícia diz que o exame médico mostrou que ela havia sofrido um abuso sexual.

Policiais disseram que no início não conseguiram conversar com a menina, por causa dos remédios que ela tomou, mas o pai disse que ela foi ouvida depois.

E a polícia prendeu um suspeito rapidamente.

No dia 30 de maio, o motorista de ônibus escolar Aung Kyaw Myo, conhecido como Aung Gyi, foi preso. Logo em seguida foi solto por falta de provas.

Em 3 de julho ele foi preso novamente e agora está sendo julgado, apesar de haver muitas dúvidas – muitos acreditam que ele está sendo acusado injustamente para que as autoridades possam dizer que capturaram o responsável.

 

Bode expiatório?

Vitória inicialmente havia identificado Aung Gyi em uma imagem de câmera de segurança que seu pai mostrou para ela em casa.

Ela apontou e disse que foi ele quem “beliscou” suas partes íntimas.

Mas as imagens não são claras, Aung Gyi é visto apenas de costas e está usando um boné. A polícia usou isso como principal prova contra Aung Gyi e o indiciou.

No entanto, em outro momento, fotos de Aung Gyi foram mostradas à menina e ela não o reconheceu.

Em vez disso, ela reconheceu duas outras pessoas, ambos menores de idade, como seus agressores.

Algumas semanas atrás, o pai da menina mostrou algumas fotos para ela que incluíam a de Aung Gyi e a de dois menores. Ela reconheceu os menores imediatamente e ficou bastante brava ao vê-los. Ela não identificou Aung Gyi.

O pai da menina a filmou pegando as fotos e apresentou ao tribunal como prova.

Durante o depoimento à Corte, mais uma vez, um conjunto de fotos incluindo os menores e Aung Gyi foi mostrado à vítima.

Dessa vez, um profissional conduziu a entrevista com a criança. E, de novo, ela apontou para a foto dos garotos como agressores, e não reconheceu Aung Gyi.

“Quando as fotos foram mostradas, ela disse que um ‘ko ko’ (termo para homem jovem) mais jovem bateu no seu peito e um ‘ko ko’ mais velho ‘beliscou’ seus órgãos genitais”, disse Ywet Nu Aung, o advogado da família de Vitória.

“Seis fotografias foram colocadas em frente à criança. Quando a foto de Aung Gyi foi mostrada, ela disse que não o conhecia. Ela também disse que a professora, Hnin Nu, a lavou (depois do incidente)”, disse Khin Mg Zaw, advogado de Aung Gyi.

 

 

A versão da creche

A administradora da escola havia negado que qualquer abuso sexual houvesse acontecido no local, e outras professores reforçaram seu depoimento.

A professora mencionada no julgamento, Hnin Nu, disse à BBC que foi interrogada por detetives nove vezes e tinha certeza que Aung Gyi não poderia ter cometido o crime.

“É impossível ter sido ele. Nós, os professores, estamos com os estudantes o tempo todo. É impossível.”

Outra professsora, Nilar Aye, disse que não tirou os olhos de Vitória o dia todo.

 

Defesa de Aung Gyi

Desde que o caso ganhou atenção, Aung Gyi ganhou muitos apoiadores que acreditam em sua inocência.

Eles dizem que os vídeos de segurança que mostram ele indo para a creche no dia do ataque e esperando na área da recepção mostram que ele não teria tido tempo de encontrar Vitória e atacá-la.

Em 6 de julho, cerca de 6 mil pessoas vestidas de branco marcharam em direção ao Centro de Investigação da Polícia, que então havia assumido o caso.

 

O que dizem os pais?

O pai de Vitória tenta não criticar a polícia diretamente, mas disse à BBC que outros vídeos de segurança foram perdidos que a investigação “não está andando”.

Ele disse que os últimos dois meses foram um pesadelo para sua família – que ele queria que simplesmente acabasse.

“Eu quero saber a verdade”, disse ele. “Nunca vou desistir, não importa quanto demore. É um crime, contra uma criança jovem, inocente.”

“Minha filha foi atacada. Mas ela ainda está viva. Ainda pode falar. Espero que suas palavras sejam ouvidas e levadas a sério”, diz ele.

 

Justiça para Vitória

A campanha de apoio a Vitória começou nas redes sociais. Alguns usários de Facebook descobriram o caso e passaram a exigir justiça. O caso começou a chamar atenção.

Duas semanas depois, um alto funcionário do Ministério da Saúde, Win Ko Ko Thein, começou uma campanha e destacou o que considerava inconsistências no caso.

Ele foi preso e está enfrentando acusação de difamação, mas suas palavras amplificaram o movimento. Celebridades se juntaram à causa.

Milhares de usuários do Facebook mudaram suas fotos para o emblema da campanha. Adesivos apareceram nas janelas dos carros.

Protestos menores também foram organizados em outros lugares do país, pedindo não apenas justiça para Vitória, mas mais ações contra abuso sexual, especialmente contra crianças.

Números do governo foram trazidos à tona, indicando que o número de estupros relatados em Mianmar aumentou 50% nos últimos 2 anos. Em 2018, foram 1.528 ataques registrados.

Em quase dois terços dos ataques, as vítimas foram crianças.

A maior confiança para trazer os casos à Justiça pode estar por trás do aumento no número de registros, mas muitos dizem que a história de Vitória expõe uma tendência preocupante em um país onde a violência doméstica ainda é vista como um problema de caráter privado.

 

Fonte: G1

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