Brasileira sequestrada conta como escapou de cárcere privado nos EUA
Do porão não dava para ver a rua. Não havia nenhuma conexão com o lado de fora. Os celulares e relógios foram confiscados, a noção de tempo era confusa: noite e dia pareciam iguais. Ela sabia que a liberdade havia sido roubada, a dúvida era se sua vida também seria. Era o mês de setembro. Em algum lugar dos Estados Unidos, Luana fora colocada em cárcere privado.
“Era muito escuro e quando subíamos pra casa, tudo era escuro. Todas as janelas e cortinas fechadas para que ninguém de fora visse o movimento da casa”, lembra.
“Depois de mais ou menos um mês, ele nos privou de comida. Botava o lixo no porão, então nós tínhamos que nos alimentar do que encontrávamos no lixo”, conta sobre seu captor.
Falsa promessa
Depois de receber uma promessa de emprego, Luana chegou aos Estados Unidos com a esperança de trabalhar como secretária em uma empresa do ramo da construção civil. A promessa era falsa. Desembarcou na Flórida e lá foi informada que, de carro, seguiria viagem até Chicago, onde ficava a sede da suposta empresa. No meio do caminho, houve uma mudança de itinerário. Foram dias até descobrir que estava, na verdade, no Kentucky.
“Acabei dentro da casa de um senhor e me vi obrigada a trabalhar pra ele. Ele acabou me colocando em cativeiro. Eu, minhas filhas, a moça que veio comigo e o filho dela”. O “trabalho” incluía limpar a casa e cozinhar. Não receberiam salário. Aos poucos, uma situação já abusiva e criminosa, se tornava cada vez mais insustentável.
“Limpávamos uma coisa e ele derramava de novo no chão. Ele tinha planos de nos vender sexualmente pra outras pessoas. Sempre falava no telefone que tinha duas brasileiras bonitas. E oferecia: ‘pode vir aqui olhar’. Muitas vezes acordei com flashes — era ele tentando tirar fotografias”, conta.
Escravidão contemporânea
A realidade de Luana representa a de 40 milhões de vítimas ao redor do mundo. Vítimas de um crime que as Nações Unidas classificam como um dos maiores desafios do século 21: o tráfico de pessoas. As duas finalidades mais comuns para este tipo de tráfico são a exploração sexual e a do trabalho. O problema é tão grave e as vítimas submetidas a práticas tão violentas que o crime é frequentemente chamado de escravidão contemporânea, conforme explica Katie Ford, fundadora da ONG Freedom For All.
“É diferente da antiga escravidão, do comércio de escravos no Atlântico, quando as leis permitiam que houvesse escravidão, quando as pessoas ficavam acorrentadas. Isto não acontece hoje.”
Ela explica que, hoje, a vítima não pode fugir por diferentes razões, seja por estar com uma arma apontada, seja por estar trancada em algum local. O tráfico humano acontece nas sombras e pode ser um crime difícil de ser detectado.
“As pessoas são mantidas escravas a partir de ameaças feitas aos seus familiares. Isto é comum, já que muitos dos traficantes são pessoas próximas do convívio social”, explica Katie.
Há casos registrados nos 50 estados americanos. O crime é combatido a partir dos esforços das polícias estaduais, do governo federal e de instituições de defesa dos direitos humanos.
O tenente Cristopher Sharp, da Divisão de Tráfico Humano da Polícia de Nova York, explica que os Estados Unidos são um país alvo para organizações criminosas. Segundo ele, o crime vai aonde o dinheiro está.
Conforme dados da organização Polaris, responsável pelo monitoramento do tráfico de pessoas dos EUA, o número de casos denunciados através da organização, entre 2017 e 2018, cresceu 25%. Um indício de que as pessoas, hoje, têm mais recursos e talvez mais coragem para denunciar. Por outro lado, também pode ser um indício de que crises, como a de refugiados e a instabilidade de países latino-americanos, contribuam para o aumento de casos.
No mês de fevereiro de 2015, cinco meses depois de ser colocada em cativeiro, Luana conseguiu escapar: ‘’Tinha uma fresta pequena, nós quebramos a fresta. Assim que ele saiu, esperamos uns 20 minutos. Primeiro eu passei as crianças”.
A fuga foi o primeiro passo, mas não foi o fim do problema.
“Fiquei na rua, passei fome, andei no frio, tinha que ficar no Walmart, Walgreens pra não ficar com frio. Não sabia que podia contar minha história pra alguém, não sabia para quem contar. Então tive que aprender tudo. Fomos tidas como mentirosas, até que encontrei uma instituição que realmente entende do assunto e nos ajudou. Começamos a descobrir o que era tráfico humano.”
Em 2017, o governo americano concedeu a Luana o visto T, para vítimas de tráfico.
“Descobri , depois que saí da casa, que perdi 35% da minha visão no olho direito por conta da luz. Sinceramente, achava que ia morrer. Achava que estava tudo acabado. Não conseguia pensar em outra coisa.”
Dois anos depois de adquirir o visto e uma permissão oficial de trabalho, Luana conseguiu seguir em frente. Voltou a estudar e se tornou líder de produção em uma empresa de médio porte dos Estados Unidos.
Para quem, como ela, sonha em construir uma vida nos Estados Unidos, Luana alerta: “O conselho que dou é: se você não tem certeza de que é uma empresa séria, com pessoas sérias, não venha. Sem visto de trabalho, não venha”.
Fonte: G1