Crime organizado no Brasil é alimentado por armas contrabandeadas dos EUA

 

Fuzis que empoderam grupos criminosos brasileiros, do PCC às milícias, vêm traficados dos EUA. País teria conhecimento das vendas ilegais – e teve até um traficante brasileiro como informante (Parte 3 e final da série).

Armas de alta potência traficadas dos Estados Unidos empoderam massivamente grupos criminosos brasileiros – como o Primeiro Comando da Capital (PCC), as milícias e o Comando Vermelho (CV) – no controle do mercado de drogas no país, o segundo com maior número de consumidores de cocaína do mundo. Somente em 2018, isso custou a vida de 60 mil pessoas.

Esta é a terceira e última parte da minha série sobre o panorama do crime organizado no Brasil, onde a violência prevalece ano após ano devido à guerra entre organizações criminosas pelo controle do território e do apetitoso mercado dos usuários de drogas.

Segundo o pesquisador Gabriel Feltran, 94% das vítimas de homicídio doloso em 2018 no Brasil eram homens, sendo 72% deles negros. Além disso, 71% das mortes foram por arma de fogo.

O que pouco se menciona é que a maioria das armas de alta potência que fortalecem o crime organizado no Brasil, como os fuzis AK-47 e AR-15, não vem dos dois pontos conflituosos mais próximos das fronteiras do Brasil. Ou seja, não vem da Venezuela, tampouco das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), mas dos Estados Unidos.

Segundo dados oficiais do próprio governo brasileiro, 24% das armas ilegais que circulam entre os grupos de crime organizado vieram dos EUA. E praticamente 100% das armas de alto calibre, como AK-47 e AR-15, nas mãos do crime organizado vieram do território americano.

Em operações de apreensão foram encontradas armas de fabricantes e importadoras como a Safety Harbor Firearms Inc., com sede na Flórida, e a Golden State Arms Distributors Inc., entre outras.

De acordo com informações compartilhadas por funcionários do governo brasileiro, assim como informações que obtive de registros criminais abertos nos Estados Unidos, o tráfico de armas dos EUA para a América do Sul ocorre com facilidade. Além de ser um negócio muito rentável: um rifle como o AR-15, que a Safety Harbor Firearms Inc. vende em seu site por um valor entre 700 e 1.200 dólares, é negociado no mercado negro brasileiro por 15 mil a 20 mil dólares.

“Como é possível que uma única pessoa tenha conseguido contrabandear mais de mil armas dos Estados Unidos por via aérea?”, comentou um chefe da Polícia Federal (PF). Ele se referia a Frederik Barbieri, um cidadão brasileiro naturalizado americano e radicado na Flórida, que faturou mais de 3 milhões de dólares com envio de armas ao Brasil.

 

 

A indagação do chefe da PF chamou minha atenção, e resolvi investigar o caso Barbieri. Encontrei o registro criminal aberto contra ele no tribunal federal do Distrito Sul da Flórida.

Barbieri, que de forma macabra se autoproclamava “Senhor das Armas”, contrabandeou pistolas de alto calibre ao Brasil pelo menos entre 2013 e 2018.

Ele e seus cúmplices apagavam os números de série das armas e as escondiam, juntamente com munição e acessórios para essas armas, em aquecedores de piscina, que eram exportados ao Brasil por meio de uma empresa de fachada. Enviadas por meio da companhia aérea Air Com International, as armas geralmente chegavam ao aeroporto internacional do Rio de Janeiro.

Com ajuda de três cúmplices, Barbieri vendia as armas para o crime organizado nas favelas do Rio (controladas pelo PCC, CV ou milícias), e os ganhos desse tráfico eram administrados por outro réu, que enviava o lucro para Barbieri.

Segundo o registro oficial, a conspiração incluía agentes alfandegários, um indivíduo em Copacabana e até um funcionário do alto escalão do governo, que o teriam extorquido para permitir que ele continuasse com o tráfico de armas.

Embora o governo dos Estados Unidos seja geralmente bastante rigoroso com as mercadorias que entram em seu território – supostamente para impedir o tráfico de drogas e a entrada de terroristas e suas armas letais -, ele não parece se importar com o que sai do país.

Não foi Washington que interrompeu a operação comandada por Barbieri, embora o traficante de armas fosse seu informante (conforme admitiu o próprio governo nos arquivos do caso), mas foi a Polícia Federal brasileira que detectou um dos carregamentos de armas de Barbieri no aeroporto internacional do Rio, em meados de 2017. Eram 60 fuzis AK-47 e AR-15 – apenas a ponta do iceberg. O governo brasileiro pediu ajuda aos EUA nas investigações.

“Durante as chamadas telefônicas controladas [interceptações telefônicas], o próprio réu afirmou que as armas de fogo foram vendidas a indivíduos nas favelas e que o pagamento foi feito em pequenas denominações monetárias porque as armas foram compradas com dinheiro das drogas”, diz um trecho do registro criminal. O dinheiro era depositado em contas do Bank of America.

Em 1º de março de 2018, Barbieri se entregou à Justiça americana. Das nove acusações, a promotoria acabou retirando sete, e Barbieri foi condenado a 12 anos de prisão por “tentativa de exportação de armas” – embora o contrabando de armas tenha ocorrido várias vezes – e “conspiração para defraudar os Estados Unidos”.

O mais chocante no caso: nos documentos judiciais que estão nas minhas mãos está descrito que o traficante de armas Barbieri foi informante do governo americano desde antes de 2014, ou seja, por mais de quatro anos, tempo em que comprou ao menos mil rifles AK-47 e AR-15.

Isso me fez lembrar que, de 2009 a 2011, o governo de Barack Obama, por meio da Agência de Álcool, Tabaco, Armas de Fogo e Explosivos (ATF), propiciou o tráfico de armas ao México através do programa “Velozes e Furiosos”, num dos momentos mais sangrentos da guerra entre os cartéis do narcotráfico.

A ATF permitiu que comerciantes de armas licenciados nos EUA vendessem para compradores ilegais mais de duas mil armas que foram traficadas para cartéis de drogas no México. O tráfico de armas foi monitorado pelo governo americano e não foi interrompido por anos, com a justificativa de querer rastrear o contrabando de armas e saber de onde chegavam.

Esse tráfico de armas que tanto incentivou a violência e a morte no México nunca importou a ninguém – até que um agente da patrulha fronteiriça dos EUA, Brian Terry, foi assassinado em 2010 com uma das armas traficadas sob a tolerância de Washington. Até então, o programa “Velozes e Furiosos” foi um escândalo mundial.

A jornalista e autora Anabel Hernández escreve há anos sobre cartéis de drogas e corrupção no México. Após ameaças de morte, teve que deixar o país e vive na Europa desde então. Por seu trabalho, recebeu o Prêmio Liberdade de Expressão da DW em 2019.

 

Fonte: Terra

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